3 de fev. de 2013

PAPO CABEÇA: SANTA MARIA, TRAGÉDIA ANUNCIADA E EVITÁVEL


Porto Alegre - São 16h20, cheguei há pouco da rua onde fiz um percurso habitual dos domingos no tempo em que morava aqui na capital gaúcha - uma volta pelo Brique da Redenção, que ocupa toda a extensão da av. José Bonifácio, que margeia o Parque Farroupilha (que nós gaúchos insistimos de chamar de Redenção, ignorando a mudança de nome ocorrida há 78 anos). Ao entrar na avenida Osvaldo Aranha para tomar o rumo do Centro, testemunhei a descida, perto de 15h30, de um helicóptero militar no estádio Ramiro Souto, um campo de futebol que fica na área do Parque. Tão logo cheguei em casa, confirmei pela RBS TV (a Globo local) minha suspeita: o helicóptero trazia para o Hospital de Pronto Socorro pessoa(s) vitimada(s) pelo incêndio ocorrido nesta madrugada na boate Kiss, em Santa Maria, a 290 km da capital. (Na foto abaixo, bombeiros prestam socorro em frente à boate)

Foto: Deivid Dutra/A Razão

Pelos relatos já divulgados, o fogo começou quando um integrante da bandaGurizada Fandangueira, que toca mensalmente na Kiss, acendeu um sinalizador, cujas faíscas atingiram a espuma usada como isolante acústico e que fica entre o teto e o forro da boate. Assustadas com as chamas, a fumaça e o cheiro, as pessoas que estavam na boate (há quem fale em superlotação), começaram a se dirigir, a princípio calmamente, em seguida já em pânico, para a única saída da boate - a mesma porta de entrada. A boate não tem saída de emergência. Testemunhas relatam que foram impedidas de sair pela segurança da casa, preocupada com a saída das pessoas sem o pagamento das respectivas comandas de consumo. Já foram confirmados 232 mortos e 169 feridos; entre os mortos, está um dos músicos, o gaiteiro, da banda Gurizada Fandangueira. 

Desde cedo tenho lido e comentado a respeito do fato no Facebook, e alguém me comentou que o uso de fogos de artifício em boates fechadas é comum. Respondi que eu não tenho visto, só vejo o uso de fogos após jogos de futebol decisivos e por ocasião do Ano Novo. Mas ao conferir o noticiário vejo que me enganei, o uso é mesmo comum. A própria Gurizada Fandangueira fazia uso do recurso em todos os seus shows, informou a RBS TV, logo a tragédia que aconteceu em Santa Maria poderia ter ocorrido em qualquer outro show da banda. E o comentarista Cláudio Britto acrescentou que, em Porto Alegre, pelo menos quatro grandes casas de shows também habitualmente soltam fogos em seu ambiente interno. 

Argentina 


Foi um quadro semelhante que gerou uma grande tragédia em Buenos Aires em 30 de dezembro de 2004, na discoteca República Cromañón, durante um show da banda Callejeros. Um frequentador da boate soltou um rojão e causou o incêndio que vitimou 194 pessoas e deixou mais de 600 feridas. Diferentemente da Kiss, a Cromañón tinha saídas de emergência, que porém se encontravam fechadas a pedido dos donos do local, para evitar que as pessoas entrassem sem pagar (enfim, o motivo de sempre: dinheiro). O fato repercutiu muito; já no dia 2 de janeiro de 2005 o secretário de Segurança da cidade de Buenos Aires renunciou. Mais adiante, a Legislatura da Cidade de Buenos Aires (o equivalente à Câmara de Vereadores dos municípios brasileiros) acusou o então prefeito Anibal Ibarra de "mau desempenho" por sua atuação no caso, afastando-o do cargo em 14 de novembro de 2005, e destituindo-o em 7 de março de 2006. Na foto acima, um posto nas proximidades da discoteca, com fotos das vítimas do incêndio.

Reflexão

No momento, as atenções estão, com toda a razão, voltadas para o atendimento às vítimas e conforto às famílias que perderam entes queridos na tragédia. Mas há que não perder o foco em relação a: primeiro, responsabilizar os responsáveis pela tragédia; segundo, que lições iremos tirar do episódio e aplicar, para que coisas assim não mais se repitam. Do primeiro foco, Polícia e Justiça se encarregarão. Falarei, portanto, do segundo foco, nos três aspectos que julgo mais pertinentes no momento.

Primeiríssimo de tudo: há que se proibir por lei o uso de fogos de artifício em locais fechados (não vejo a mínima justificativa para isso, dado o perigo que todos correm). 

Em segundo lugar, talvez seja necessário maior rigor em relação ao álvara de funcionamento. De acordo com o comandante do Corpo de Bombeiros da Região Central do Rio Grande do Sul, tenente-coronel Moisés da Silva Fuchs, o alvará de funcionamento da boate Kiss estava vencido desde agosto. Há cinco meses, portanto! Ora, o Corpo de Bombeiros e/ou a Prefeitura de Santa Maria (através de sua Secretaria de Fazenda, ou Indústria ou Comércio, ou equivalente) - além, é óbvio, do proprietário da casa - tinham esta informação. Por que razão um estabelecimento que precisa de alvará para funcionar pode seguir aberto com ele vencido? Se meu passaporte estiver vencido, eu não consigo emitir visto para nenhum país que o exija de um cidadão brasileiro, ou ainda embarcar num avião se o passaporte tiver vencido após a emissão do visto. Chegada a data-limite e não havendo pedido de renovação por parte do responsável pela casa, a mesma deveria ser fechada até a regularização (talvez alguém venha alegar o prejuízo econômico ao proprietário, com a casa fechada. Ele poderá evitar esse prejuízo, fazendo a renovação na data prevista. E muito maior é um prejuízo a centenas de famílias, como ora assistimos).

Em terceiro lugar, como se pode liberar para funcionamento uma casa noturna onde não há saídas de emergência? Isto não é fiscalizado também por Bombeiros, ou Prefeitura? Se o poder público não o exigir, certamente não serão os proprietários, de forma espontânea, que irão se preocupar com isso.

Um comentário:

Fabio Gomes disse...

O texto foi escrito no domingo passado, poucas horas após o anúncio da tragédia de Santa Maria.